Em busca do tekoha
O ladrão não vem senão para roubar, matar e
destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. (Jo 10,10)
“Para que sejam respeitados os povos indígenas,
ameaçados na sua identidade e na sua própria existência”. Essa foi a prece que
o papa Francisco fez em favor dos indígenas que historicamente são maltratados,
excluídos, desprezados, massacrados, mortos. O Espírito Santo que conduz a
história rumo a cristificação do universo e distribui os dons e carismas
conforme a vontade do Pai e as necessidades da humanidade jamais deixou que os
primeiros habitantes da tão sofrida América viessem a desaparecer, sendo que em
meio a tanta opressão surgiram sempre vozes que se levantaram para os defender.
Mesmo que por vezes parece que a busca pela ‘Terra sem males’ torna-se cada vez
mais distante, a esperança de sua realização jamais se afastou do coração e dos
ideais dos povos indígenas deste nosso imenso país.
Na certeza de que Deus está a encaminhar os nossos
corações, em abril de 2016 nos é apresentado a proposta de viver com os povos
indígenas do Mato Grosso do Sul pelo período de aproximadamente 15 dias. Tal
proposta foi acolhida com abertura e alegria, sem muitas pretensões mas apenas
o desejo de estar e viver com tal realidade que por vezes nos é apresentado tão
distante e em extinção.
Sendo assim, após 14 horas de viagem chegamos a
Campo Grande (MS), onde somos recebidos pelos missionários do Cimi (Conselho
Indigenista Missionário), e pelas Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora
Aparecida. Com uma fraterna acolhida e um profundo espírito missionários nos é
apresentado um panorama geral e histórico da situação da população indígena no
Mato Grosso do Sul. Pelo engajamento e pela emoção com que os envolvidos
falaram, logo percebe-se que pela situação complicada, desafiadora e degradante
há um profundo apelo evangélico que clama por libertação. Índios desaparecidos,
muitos assassinados, famílias despejadas, crianças morrendo em consequência ao
uso de agrotóxicos, um verdadeiro genocídio. Uma militarização formada por
deputados, fazendeiros, meios de comunicação, força militar, guardas (jagunços)
contratados por fazendeiros para “proteger as terras” e que matam os indígenas
indiscriminadamente. Logo percebe-se que seria uma experiência inesquecível.
Ao longo dos 11 dias, na medida em que se vive a
experiência de conhecimento da cultura indígena, há um processo de desconstrução
dos conceitos prévios que recebemos, uma abertura para uma compreensão
humanizadora e a construção de um grande amor. Rapidamente se percebe que ali
há um grande tesouro, por que vale a pena gastar a vida, na luta pela justiça,
lado a lado com esse povo.
Na região de Dourados vivem cerca de 45 mil
indígenas, sendo que em sua maioria Guarani e Kaiowá, constituindo assim a
segunda maior população indígena do país. No processo histórico os Guarani e
Kaiowá foram expulsos seus tekoha (seu habitat natural, o que faz o Guarani ser
o que ele é, é parte de sua identidade, é onde se vive e se comunica com o
transcendente). Este processo de expulsão, mesmo tendo acontecido há décadas
atrás, está fortemente registrado em suas memórias, transmitidas pela tradição
oral. Foi um despejo muito traumático pela violência aplicada, sendo relatados
do caminhão vir buscar e os que se recusavam a ir embora eram quebrados o
calcanhar para não conseguirem mais caminhar. Expulsos de seus tekoha são
obrigados a viver em reservas, como que ilhas cercadas por grandes fazendas que
formam como que um mar de soja e cana de açúcar, que avança a cada dia
diminuindo ainda mais seu território, e com o rápido crescimento demográfico
torna-se pequeno para ter uma vida digna com seus ritos e cultura.
Os Guarani e Kaiowá pela situação a que foram
obrigados viver, são sentenciados a morrer gradativamente esmagados pela
ganância capitalista, do agrobanditismo, disfarçado de agronegócio. Como último
suspiro de alguém que está prestes a morrer, e ainda existe uma chama de
esperança que está fumegando, no ano de 2013 em uma reunião, os Guarani e
Kaiowá decidem a morrerem retomando sua terra, inicia-se assim os processos de
retomadas de seus tekoha, que continua até hoje lutando pacificamente pelo que
lhes é de direito, mesmo que sejam assassinados em massa, como está
acontecendo.
As retomadas vão muito além de voltar a sua terra
ancestral. Retomar seu tekoha é reviver a cultura, os hábitos, as crenças, em
um ambiente que lhes propicie viver e ser aquilo que são. A consequência
de estar fora de seu tekoha é a perda de identidade, perda de sentido para a
vida, perca de perspectivas futuras. Esses são os principais motivos que
acorrem no uso de drogas, alcoolismo e o suicídio especialmente entre os jovens
indígenas de 10 a 18 anos.
Diante de tal realidade é impossível se fazer
indiferente, pois vai além da capacidade de entender como pessoas que se dizem
cristãos, dão tão pouco ou nenhum valor a vida, dom de Deus dado a todos,
independente da raça, cultura ou da fé de cada um, uma vida é uma vida, e nada
nem ninguém tem o direito de tirá-la.
Pergunta-se que desenvolvimento é esse que na busca
pelo progresso de alguns, em benefício da nação de poucos, dá ao agronegócio o
direito de matar, mutilar e destruir milhares de vidas dentre ela os Guarani e
Kaiowá? Vidas tão preciosas, quanto a minha ou a sua, aos olhos do Pai Criador
de tudo. Durante os diversos dias que estivemos em área, a situação mais
desumana é de dona Damiana, uma senhora de 74 anos, viúva, que cuida de um
neto. Com alguns parentes foi despejada de seu tekoha de três hectares,
onde está o cemitério de sua família coberto pela cana. Uma cena
revoltante para quem acompanhou o despejo.
Mais de 60 policiais armados, apoiados por máquinas
retroescavadeira e tratores, que destruíram e feriram não só os barracos mas
história, a memória, o coração e a esperança de uma família que pela quinta vez
é despejada. Tiram à força de sua terra, e são jogados na beira da estrada com
seus poucos móveis encharcados com a chuva, pelas lágrimas do próprio Deus. É
uma situação desoladora e revoltante. Como pode a ganância humana chegar a esse
ponto? A coragem da cacique Damiana, faz de sua pequena estatura
uma gigante para todos que conhecem sua história de vida, esperança e
luta. Como ela mesma diz “Eu só quero voltar para o meu tekoha, lá está toda
minha família. Não importa que me matem, aqui fora do meu tekoha já estou
morta, eu não posso sair daqui, eu pertenço a esse tekoha.”
Nós, os Karai (homem branco), temos muito
que aprender com os Guaranis e Kaiowá, que mesmo em meios a tantas injustiças,
massacres, genocídio continuam com coragem e esperança de voltar a viver no seu
tekoha e o sonho de encontrar a “Terra sem males” que já buscam a mais
de 500 anos.
Ao concluir uma missão como esta, e voltar a nossas
missão cotidianas é impossível se fazer indiferente a causa indígena, de não
voltar o nosso coração, oração, e lágrimas a dor que este povo, nosso povo
continua a sofrer. Que as preces de nosso Papa Francisco sejam ouvidas por
Ñanderú Guasu, Criador do céu e da terra que nunca abandona o seu povo sofrido
e escuta o gemido de seus amados filhos. Que nós como sociedade civil e como
Igreja não tapemos os nosso olhos e não fechemos os nossos ouvidos a esta
súplica. Deus dos pobres vem nos libertar desta escravidão! O desejo que
permanece é de voltar e festejar no mba’e marangatu tomando chicha em meio a
cânticos e danças.
Missionários do Sagrado Coração,
Adilson Gomes Teixeira, msc;
Eugenio Luedke, msc ;
Lucas Fonseca Machowsky, msc