Ano Nacional Mariano: Olhar Jesus e a
religiosidade do seu povo.
A
Igreja no Brasil vivencia um Ano Nacional Mariano, por ocasião dos 300 anos do
encontro da Imagem de Nossa Senhora Aparecida, por simples pescadores, nas
águas do rio Paraíba do Sul. Tal fato ganhou significado no coração do povo
brasileiro por vários motivos. Entre eles está o contexto de escravidão ainda
presente nos anos de 1717, a busca pelo sagrado sobretudo em momentos difíceis
da vida.
Celebrar
os 300 anos desse fato, a Mãe que se apresenta aos filhos, de forma escurecida,
negra, que atrai milhões de romeiros de todo o Brasil e fora dele, nos remete a
lançarmos um olhar para a forma como Jesus vivenciou a religiosidade de seu
povo, sobretudo os mais simples, iletrados das leis judaicas, para que suas
atitudes iluminem também a nossa hoje.
A vivência
de Jesus com o seu povo, relatada no Novo Testamento, a forma como recebeu os
sinais sagrados, os costumes, as leis, as tradições, como Ele falou ao povo
simples, o que assumiu e o que purificou acerca da formação religiosa é de suma
importância para todos nós. Olhar a Bíblia, Palavra de Deus inspirada em uma
cultura particular, e a partir dela disseminada para o universal, faz possível
encontrar traços de religiosidade popular, que provocam a nossa religiosidade
hoje.
Segundo
o teólogo Diego Irarrázaval, uma leitura honesta da Bíblia não sustenta uma
defesa da religiosidade popular de hoje, mas também não a desautoriza. Salienta
que é preciso interpretar os textos bíblicos com os olhos do pobre da
comunidade eclesial, tendo em vista que na forma bíblica predomina o gênero
literário da narração, e também nosso povo possui uma forma de relatar os fatos
de seu coração e sua vida, por isso, pode-se compreender melhor as narrativas
do povo israelita, de Jesus e de seus seguidores, mesmo que a hermenêutica seja
uma tarefa difícil no contexto de hoje.[1]
Todos
os seguimentos, grupos e movimentos são interpelados em sua vivencia religiosa,
e por isso buscam critérios bíblicos para fazer o discernimento pascal ou mesmo
suas equivocações, esse processo precisa ser orientado pelo magistério da
Igreja, em sua catequese eclesial.[2]
A
História da salvação, Antigo e Novo Testamento é caracterizadapor tantas vidas,
entendimentos; escuta, bocas e mãos, recheada de práticas humanas nos seus
diferentes momentos, sempre na busca da compreensão de si mesma, do homem e de
Deus. É exatamente nessa história que Deus escolhe se manifestar. Nada do
humano recebe disfarce nas Sagradas Escrituras, nelas estão contidas trajetórias
pessoais e coletivas, com suas mazelas, infidelidades, erros, acertos, atos
mágicos, superstições, mitologia, exortações, idolatrias, guerras, bênçãos e
maldições, peregrinações, perseguições, solidariedade, curas, lamentações,
paixões, desencontros, ciúmes, assassinatos, compaixão, rituais, dádivas,
hibridismos culturais, mandamentos, idolatrias, tudo isso expresso por meio de
metáforas, analogias, símbolos, e vários gêneros literários. Neste meio vasto,
está a religiosidade popular que Jesus de Nazaré conheceu, conviveu e em parte
se identificou.[3]
Não
muito diferente da nossa história hoje, rica de valores cristãos e ao mesmo
tempo descristianizada: guerras, violência, há quem se entregue em nome da paz,
do amor e da justiça, há quem se corrompa e ajude a corromper os demais, há
sagrado, também existe o profano, há quem abençoe, mas também amaldiçoe, há
equilíbrio, bem como fanatismo, é nesta história que o Senhor Jesus segue
presente, garantindo sua promessa: “Eis que eu estou convosco todos os dias,
até a consumação dos séculos”.[4]
Jesus
participou intimamente da existência de seu povo, é mestre, frequenta a
sinagoga, anuncia, age com coragem. Não era anti-religioso, sua condição divina
não o separava das religiões humanas. Não obstante, recusava algumas formas
judias, por outro lado, participava e incentivava modos de religiosidade.[5]
Jesus
cresce no conhecimento, comportamento e sentimentos do povo judeu, vivendo
todas as dimensões e implicações humanas de seu tempo, crescendo em sabedoria,
estatura e graça diante de Deus e dos homens.[6]
Em sua
vida pública estava sempre cercado pelo povo, no contato pessoal, no toque, no
olhar. Os evangelistas afirmam em seus relatos que Jesus soube, viu, conheceu,
ficou sabendo, suas reflexões sempre tinham dimensão religiosa, sem jamais
deixar de estar no chão da vida.[7]
Era no
contato diário com o povo que Jesus o escutava, percebia suas práticas, seus
dramas, dilemas, tristezas, esperanças, a começar pelos apóstolos que eram em
sua maioria, pescadores. Quis formar um grupo com pessoas de vários pensamentos
e experiências, sabia lidar com o diferente, com o feminino, com as crianças e
idosos. Soube valorizar a profissão e o talento pessoal, transpondo-os para o
serviço do Reino, quando ao chamar Simão Pedro e André, sem dar muitas
informações, só antecipou que seriam pescadores de homens.[8]
Ao menos aqueles homens, respondiam ao chamando com a garantia de que
continuariam sendo pescadores.
É
comum nas religiões constarem dois polos fundamentais: as crenças ou os dogmas
e a prática desses na vida e moral do povo. O judaísmo tem como dogma ontem e
hoje o monoteísmo radicalmente unipessoal: Um só Deus, um único Deus. Além do
decálogo, o judaísmo não tem uma série de verdades, mas isso não significa que
não tivesse crenças próprias.[9]
Sabe-se
que a prática do judaísmo no tempo de Cristo, e ainda nos dias de hoje, de
forma mais branda, compete mais aos homens do que às mulheres, pois os homens
são os verdadeiros membros de Israel, assim, há uma série de ritos particulares
que formam uma liturgia doméstica.[10]
Facilmente
encontramos Jesus em discursão e desacordo com as práticas religiosas de
determinados grupos, critica os radicais da lei que não cumprem o essencial: “a
justiça, misericórdia e a fé” (Mt 23, 23).[11]Colocam
pesos insuportáveis nas pessoas e no entanto são até responsáveis por
assassinatos (Lc 11, 46-48)[12].
Não se trata somente de uma situação religiosa, pois Jesus possui a
capacidadede ver as pessoas integralmente.[13]
Jesus
vai entrando em conflito com as estruturas sagradas do tempo (sábado), do
espaço (templo) e da ordem social (a lei), observa-se que não são meros
aspectos, são as expressões da religião oficial. O descanso do sábado é
preceito que não impede Jesus de agir em favor dos necessitados (Mt 12, 10-14).
Avistando o Templo em outra ocasião, Jesus chora, por conta de ter sido
rejeitada a mensagem de Deus, por isso ver a destruição e ruina da cidade santa
que não reconhece a visita de Deus (Lc 19, 41-44).[14]
Observando
a relação da religião com a casa de Deus, seja os que ensinam, como os menos
instruídos, Jesus não permite que o lugar de oração seja transformado em espaço
de exploração dos peregrinos (Mc 11, 15-17).[15]
Ele que após o seu nascimento quis cumprir “tudo o que era conforme a lei do
Senhor” (Lc 2, 39).[16]
É sabido que Jesus participou anualmente e várias vezes no ano, antes, sob a
guarda de seus pais (Lc 2, 41-42)[17]
e durante a sua vida apostólica das festas judaicas, subindo a Jerusalém, como
todo judeu fazia (Jo 5, 1).[18]
A
teóloga Vilhena ressalta a forma simples de Jesus apresentar o Reino e Deus.
Não apresentou nenhuma nova doutrina sobre
Deus, não propôs a aceitação de dogmas calcados em especulações metafisicas
sobre os Mistérios de Deus, não transmitiu formulários de fé expressos em forma
de Credo. Mas falou sobre fé, a confiança no amor incondicional e na justiça de
Deus, que faz chover sobre justos e injustos.[19]
Seus
seguidores eram pessoas simples, iletradas, incultas e descriminadas, Jesus
pouco exigia, além da companhia, do seguimento, da abertura para o aprendizado
e para a pratica do que era transmitido por palavras e ações. Não disposto a
glórias e honrarias, exigia dos discípulos a disposição de levar a outros sua
mensagem de vida.[20]
Esse povo simples, com sua mentalidade religiosa, não media esforços para estar
com Jesus, cada um com seus motivos particulares: enfermidades, dúvidas,
curiosidade, más intenções, a pedido de outros, em favor de outras pessoas.
Em
contato e sabedor de sua religião, Jesus com o seu “Eu porém, vos digo”,
repetido seis vezes, em Mateus não recusa, com simplicidade a atualizar com o
amor as leis e dar a elas pleno cumprimento. (Mt 5, 20-48)[21]
Aos pobres e oprimidos aliviou suas dores e cargas de deveres e preconceitos,
foi critico com os tabus relativos a pureza e impureza, causa de exclusão do
convívio fraterno, não aceitou a crença popular que atribuía a origem de
enfermidades e deformidades como castigo divino aos pecadores ou a sua geração.
(Jo 9, 2). Mentalidade essa ainda muito presente entre os cristãos hoje.
Jesus não
optou por uma religiosidade, mas sim pelo Deus de seu povo, do qual é Filho.
Assume assim a piedade judia em seu contexto familiar e na associação com os
marginalizados. As crianças, os enfermos, pecadores, a mulher, os possessos
eram seus prediletos.[22]
Ao
observarmos os romeiros e romeiras do nosso país, excerto os que vão à busca de
turismo religioso, são simples, com esperança de renovação e em busca de um
milagre.
Importante
ressaltar a capacidade de Jesus em falar na linguagem que o povo entenda. Ele
sabia da importância de sintetizar a lei em termos de amar (Mt 22, 36-40)[23],
isso era um contrate com a infinidade de preceitos e normas que oprimiam o
povo. Em matéria de ritos, Jesus aparece fazendo orações matutinas e noturnas,
orações de bênçãos, ora solitariamente (Lc 5, 16)[24],
nas situações cruciais de sua missão (Lc 2, 21; 6,12;11,1; 22,32;23,34.46)[25]
. Desde o batismo até a Paixão é relatada uma profunda intimidade com Deus,
pois Ele é o Filho amado, anuncia o Reino e o torna presente. Ao tempo que Jesus
assume a religião de seu povo, age também segundo a sua condição divina.[26]
Seu
olhar sempre atento, não perdia a oportunidade de esclarecer os equívocos nas
posturas e na interpretação da lei. Cita Isaias para criticar o vazio do culto
dissociado da prática: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está
longe de mim. Vão é o culto que me tributam, pois o que ensinam não são mais
que preceitos humanos”(Mc 7, 6-7)[27].
Jesus
completa sua exortação acerca do vazio espiritual e a real interpretação da
pureza e impureza.
Com efeito, é de dentro do coração humano que
saem as intenções malignas: prostituições, roubos, assassínios, adultérios,
ambições desmedidas, maldades, malícia, devassidão, inveja, difamação,
arrogância, insensatez. Todas essas coisas más saem de dentro do homem e o
tornam impuro.[28]
Jesus
rejeita as práticas religiosas estéreis, que saem dos lábios, mas não são
evidenciadas na prática pessoal e na vida comunitária. O apego a pequenas
regras sob a aparência de vivencia religiosa, não é garantia de uma vida reta
em Deus.
Passagens
como a da mulher com hemorragia, em que o simples toque da fé na veste de Jesus
é capaz de extrair o suficiente para uma vida liberta de todo mal (Mc 5, 25-34)[29],
a expressão do toque, da necessidade de estar próximo é uma característica
forte da religiosidade popular.[30]
Paulo, homem tão instruído na lei, também teve expressões de religiosidade
popular, quando em At 18, 18b[31]
mostra o apostolo dos gentios, tendo cortado o cabelo em Cesárea por conta de
um voto feito, e conclui o ritual junto com quadro judeus cristãos. (At 21,
23s.26).[32]
O Mestre que esteve apertado pela multidão por
várias vezes, hora faminta, hora enferma, experimentou também o abandono e a
ingratidão. Onde estavam todos no momento de extrema importância da cruz? No
calvário havia apernas um pequeno grupo de pessoas, foi preciso esperar um
tempo, o tempo do Espírito em Pentecostes, para que também um pequeno grupo
entendesse e assumisse sua missão.[33]
Tendo
em vista a prática de Jesus, que foi filho de seu tempo, sem perder de vista
sua missão, podemos neste Ano Nacional Mariano, aprender do Senhor o respeito
integral a pessoa, a ternura da ajuda, o cuidado com a vida humana e da
natureza.
Olhar
a presença de Maria, na sua Imagem de Aparecida, nos interpela a buscar cada
vez mais o seu Filho, a fazer tudo o que Ele nos disser (Jo 2, 5)[34], a
escutar sua palavra e assim formar a grande família dos que fazem a vontade do Pai (Mt 12, 50).[35]
Diácono José Maria Monteiro de Sousa Filho – MSC.
[1] IRARRÁZAVAL, 1993, p. 200.
[2] IRARRÁZAVAL, 1993, p. 201.
[3] VILHENA, 2015, p. 110.
[4]Mt 28, 20b.
[5] IRARRÁZAVAL, 1993, p. 206.
[6]Lc 2, 52.
[7] SALVADOR, Joaquim, A religião do Povo. Cadernos. StudiumTheologicum. Curitiba, 1976.
[8]Mt 4, 19.
[9] SALVADOR, 1976, p.70-71.
[10] SALVADOR, 1976, p. 74.
[11]Mt 23, 23.
[12]Lc 11, 46-48.
[13] IRARRÁZAVAL, 1993, p. 206.
[14]Lc 19, 42-44.
[15]Mc 11, 15-17.
[16]Lc 2, 39.
[17]Lc 2, 41-42.
[18]Jo 5,
1.
[19]VILHENA, 2015, p. 111.
[20]VILHENA, 2015, P. 111.
[21]Mt 5, 20-48.
[22] IRARRÁZAVAL, 1993, p. 207.
[23]Mt 22, 36-40
[24]Lc 5, 16.
[25]Lc 2, 21; 6,12;11,1; 22,32;23,34.46.
[26] IRARRÁZAVAL, 1993, p. 208.
[27] Mc 7, 6-7 citando Is 29, 13.
[28] Mc 7, 20-23.
[29]Mc 5, 25-34.
[30] BRASIL, Ney. P. Amostras da religiosidade popular no Novo Testamento. Encontros Teológicos: revista da FACASC e do ITESC, Florianópolis, ano 4, n.1. p. 7, 1989.
[31]At
18, 18b.
[32]At
21, 23s.26.
[33] VILHENA, 2015, p. 112.
[34]Jo 2, 5.
[35]Mt 12,50.